A chuva se empoça entre paredes sem telhas. Rodam gentes. Um menino segura o furacão em busca de sonhos. O homem ronca em ventos, enquanto a água eleva seu corpo ao teto até esmagá-lo e dissolvê-lo em morte. Retribui-se a fome com o desgosto e a sede com a inundação. Famílias fogem, andando, correndo, nadando, debatendo-se, afundando-se. Sobram olhares. Olhos sãos, de pés emersos na planície. Afogam-se no peito contraído. Esgotam-se.
Maria Helena J. M. de Macedo
quinta-feira, 11 de setembro de 2008
sexta-feira, 27 de junho de 2008
Luz
A moça cai às portas do Batalhão. O soldado grita aos colegas. Oito mãos levantam a grávida em sincronia e deitam-na sobre a carroceria do veículo de guerra. Ela geme em febre de dor. As pedras esculpem o caminho como bruscas ondas em tempestade. Dirigem como se escalassem a rua. Os faróis deixam enxergar o hospital. Lá dentro, a escuridão aproxima os doentes da morte. As oito mãos constróem a maca da mãe iminente. A fraqueza do corpo contrasta com a força do olhar. Improvisa-se um leito. Chega o doutor sem título. As mãos buscam acender as velas do quarto sem luz. A criança nasce batizada pelas chamas. A barriga de montanha se transforma em gente. O grito do bebê acirra os sorrisos. Todos vêem como se jamais existisse o escuro.
quarta-feira, 4 de junho de 2008
Ausência
Passeia como fantasma. Entre tantos negros, a brancura doente. Eu sou mais uma a assustar-se com a imagem do menino albino. A ausência da cor pinta o rapaz. A mãe entende que pecou, recebendo castigo justo com o filho impuro. O sol toca a pele alva tatuando-lhe o câncer. A ferida lhe corrói, aos poucos, a pele, o músculo, os nervos. Morre, em breve, de dor. Ignora a proteção da camisa, dos óculos, do creme anti-raios-violeta. E ele insiste em querer expor-se ao dia, para apagar sua diferença, bronzeando-se com o pigmento da metástase. O filho da lua enxerga melhor à noite, quando sua cegueira diminui e é capaz de ver-se mais escuro. O corpo arde menos com a brisa do orvalho. Alegra-se.
sexta-feira, 23 de maio de 2008
Presente
Abraçam-me os sorrisos de mil lacinhos coloridos nos cabelos negros. Seguram minhas pernas enquanto o meu coração se desequilibra perante tantos bebês cinzas sem músculos e quase sem nomes. A mãe, que desconhece o além da sobrevida, impede o filho de conhecer o colo. Puxa o braço do menino como embrulho e larga-o no canto como presente abandonado. Oferece-lhe o seu mesmo destino.
Entregam-me um neném que, forçando o pezinho áspero no meu corpo, se acomoda no meu busto. Eu vejo o choro engolido no olhar opaco do pequeno que cansou de gritar com lágrimas. A vida de meses sem nascer. Agacho para atender a menina dos lacinhos que achou graça nos meus cabelos e quer me fazer carinho. Doce.
Entregam-me um neném que, forçando o pezinho áspero no meu corpo, se acomoda no meu busto. Eu vejo o choro engolido no olhar opaco do pequeno que cansou de gritar com lágrimas. A vida de meses sem nascer. Agacho para atender a menina dos lacinhos que achou graça nos meus cabelos e quer me fazer carinho. Doce.
quarta-feira, 14 de maio de 2008
Correnteza
O rio estende suas línguas secas que golfam os dejetos do povo. A chuva não alcança a garganta da foz. A paisagem engasga-se com a água que a redecora, mas não acorda o leito. O lixo dança em ciranda para o mar.
Na estiagem, volta o cardume de gente que arma as feiras nas margens e remenda de novo a sujeira. Lá vão uns homens, banhando-se de sol, costurando em travessia o trajeto da correnteza. Lá vão, descansando nas poças o suor que escorre como rio.
Na estiagem, volta o cardume de gente que arma as feiras nas margens e remenda de novo a sujeira. Lá vão uns homens, banhando-se de sol, costurando em travessia o trajeto da correnteza. Lá vão, descansando nas poças o suor que escorre como rio.
quinta-feira, 8 de maio de 2008
Casa
Pedras em muros altos escondem piscinas e varandas. Moradores refugiam-se, privados dos passeios da cidade, seguros de sua liberdade. Vê-se, da janela, moradas de blocos de cimento, encaixados em improviso sem completar os vergalhões que, apontados para o céu, se juntam como árvores nos tetos feitos de praças e paredes feitas de varais. Outras pedras apoiam-se sobre os telhados impedindo-os de voar. Perto do porto, a vida acampa em barracas de pau e de lata. Homens armam-se de pedras, vagam pelas ruas, onde residem.
Maria Helena J. M. de Macedo
Maria Helena J. M. de Macedo
Sorte
Ela encarou meus olhos ainda verdes no crepúsculo com seus olhos negros. Agachada, lavava seu rosto com a água que atravessava a rua, levando a sujeira da face e da cidade. Deixava sua casa vazia dia e noite. Vagava para ocupar o tempo nas tardes e para fugir dos mosquitos nas madrugadas. Eu a via desaparecer misturando-se entre outras tantas madames nas ruelas do morro. Meus olhos já escuros na noite pasmavam-se com o brilho das velas que se acendiam. O mercado não dormia. Eu andava entre as barracas estreitas com o medo que me apagava entre os demais. As frutas, as flores em botão transpiravam o calor e eram alisadas pelas chamas. E as donas das cestas cuidavam de seus bens como estátuas cantantes, com saias cumpridas, escondendo as necessidades. O cheiro de querosene e fósforo, o cheiro de galinha e suor, o cheiro acordava meu andar entorpecido. Eu me ia, seguindo minha sorte, num mundo distante.
Maria Helena J. M. de Macedo
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